A história por trás da história
-D. Conceição e seu aluno Cido-
Minha mãe, D. Maria Lupércia da Conceição Locredio Melare (ou só Conceição, como gostava de ser chamada), Com, Ceição ou Ciça (para meu pai, Sr Honório Melare, amigos e família), era uma mulher doce, forte, sempre ponderada e muito dedicada a tudo e às pessoas ao seu redor. Sua frase preferida era “toca o barco”, numa clara referência que a gente não deveria se dobrar nunca a nada e sempre seguir em frente com fé. Nunca desistir, mas também não guardar ou cultivar as coisas ruins que sempre nos acontecem.
Ela tinha uma relação tão intensa com seus alunos, a ponto de ser frequentemente parada para ganhar um abraço. Eu presenciei essa cena muitas vezes. E, pasmem, depois de quase trinta anos de magistério e já afastada da sala de aula por mais esse tanto, ela se lembrava do aluno, da escola e, com um sorriso no rosto, ela dizia coisas sobre o aluno, sobre seu comportamento e sobre a escola onde ela deu aula para ele.
Eu me lembro dos cadernos desenhados e pintados e da letra redonda, “de professora primária” que era.
Sempre amou seu ofício e se dedicou a ele com todas as forças, até se aposentar.
Contava muitas histórias do começo difícil, de ter comprado uma carroça para poder levá-la até a escola rural, dos pães que as mães levavam para ela, das festas, das reuniões com os professores, das amigas que lhe davam carona para o trabalho.
Quando se é jovem, e os pais contam suas histórias, por vezes, você não dá o devido valor, naquele momento. Você se orgulha, você ri, mas são histórias de um tempo que não é o seu presente.
O fato é que, embora eu não me lembre de tudo o que ela contava, lembro-me como se fosse hoje, do brilho no olhar dela ao comentar sobre seus alunos, principalmente do “menino” que ela sempre trouxe em seu coração. Todas as vezes em que eles se encontravam, o abraço era tão longo e tão carinhoso, era tão especial, que em sua despedida pedi ao “Cido” (Aparecido Vieira Brito) que falasse às pessoas do que ela era capaz.
Logo depois do seu falecimento, eu resolvi que essa parte da história de amor entre eles deveria ser dividida com outras pessoas. E minha mãe ser lembrada por ter exercido o magistério com dignidade, com dedicação, mas, sobretudo, com amor. E como ela sempre foi professora do infantil, nada mais apropriado do que escrever essa história de uma forma lúdica, voltada para esse público.
Procurei a Kátia Sentinaro. Contei a história. No dia seguinte, ela me ligou, dizendo que já tinha o personagem. Ele seria um coelho, porque as crianças facilmente se identificam com esse meigo e esperto animal. Tudo o que aconteceu depois foi o resultado do trabalho de uma equipe profissional e sensível a uma história que, no fundo, é de amor e de superação.
O ano era 1978 e o Cido, com então oito anos, era aluno da segunda série da professora Conceição, lá na escola da Usina Palmeiras. Minha mãe notou logo de cara que havia algo errado com ele. Ele havia nascido com uma deficiência física, que não só dificultava seu aprendizado (mesmo sentando na primeira carteira), como também o deixava sem autoestima.
Mesmo tão pequeno, ele pedia, em suas orações, que um anjo viesse para ajudá-lo.
Certo dia, foi chamado na escola. Lá foi avisado de que ele tinha uma consulta marcada com o Dr. Fábio Frias, um conceituado otorrinolaringologista de Araras/SP, que não mediu esforços para que algo fosse feito por aquele menino doce e tímido, com o cabelo comprido, escondendo a deficiência. Na primeira consulta, minha mãe fez questão de ir junto. Logo, o médico entrou em contato com um dos seus professores, no Hospital das Clínicas em São Paulo, o titular da pasta. E, a partir daí, se iniciaram as cirurgias.
Lembro-me dela contando da angústia que sentiu por muito tempo, com medo de que algo de ruim pudesse acontecer com ele durante as cirurgias. A culpa, então, segundo o seu juízo, seria dela. Rezava muito para que N. Sra. do Patrocínio o acompanhasse em todos os momentos. Vale lembrar, que todo o processo ocorreu por intermédio da então Secretária da Diretoria da Usina Palmeiras, Sra. Helena Dalgé, que foi designada para acompanhar o caso e orientar a família simples nestes momentos.
Logo Cido partiu com os pais para São Paulo, para o Hospital das Clínicas e, por dois anos, se submeteu a muitas cirurgias de recuperação. A primeira foi para reparação da úvula (a “campainha” era dividida em dois), o que causou preocupação em todos, pois ele não conseguiria comer por quase um mês. E, então, dos oito aos dez, vieram as demais, para a reconstrução da orelha.
Sempre que voltava de uma cirurgia, ele corria para abraçar a professora, na escola, e ela, com um sorriso largo no rosto, conseguia animá-lo e encorajá-lo sempre a nunca desistir de nada.
Já adolescente, veio estudar na “cidade” (como se dizia na época) e se formou na faculdade de Biologia de Araras. Lembro-me muito bem quando o Cido veio trazer o convite para a sua formatura. Foi impossível não chorar, vendo o abraço e a emoção de ambos.
“Esse é o meu menino!” – disse, orgulhosa, minha mãe.
Sempre que passava por alguma dificuldade (que não foram poucas), ele se lembrava das palavras dela, para que ele nunca desistisse, mas que persistisse em busca do seu espaço e da sua realização na vida.
Formado, veio a vontade de ser professor, para poder fazer por outros alunos o que ela fez por ele. Se tornar coordenador da E.E. Dr. Cesário Coimbra, em Araras/SP, foi só mais uma de suas muitas vitórias:
“Eu era muito isolado, me sentava na primeira carteira e lá ficava. Mas ela me deu uma chance de viver melhor. Todas as vezes em que ajudei um aluno, era ela que eu via na frente, me guiando. Sou muito grato a ela, à minha mentora profissional. Eu me inspiro nela, quando piso no chão da escola. Quando ajudo um aluno em dificuldade, penso na angústia que ela sentiu, porque me sinto angustiado também. Mas, assim como não desisti, eu digo a eles para não desistirem. Que caminhem sempre em direção a seus sonhos.”
E, agora, eu, a escrever essas linhas, penso no quanto (sem saber) ela me serviu de inspiração para ser professora e para me realizar como cantora. Na verdade, minha mãe sempre foi minha luz, minha parceira. O porto para onde eu sempre podia voltar e encontrar segurança.
Espero que esta história ecoe por muito tempo e que muitos “Cidos” e “Cons” nela se inspirem, para que continuem se ajudando, e para que não desistam. Nunca.
Da filha,
Maria Eliza.
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